Vinícolas argentinas e chilenas disputam o posto de produtoras de um dos tipos mais raros da bebida
Entre as muitas rivalidades entre Argentina e Chile, que vão de limites geográficos ao longo da Cordilheira dos Andes a questões históricas envolvendo guerras, recentemente uma nova discussão passou a mobilizar as vinícolas localizadas no chamado “fim do mundo”, territórios dos dois países próximos à Antártida: quem produz os vinhos mais austrais – ou mais ao sul – do planeta?
Segundo ampelógrafos, os vinhos de regiões austrais são caracterizados por acidez, texturas e aromas próprios, muito distintos dos tradicionais merlot e cabernet sauvignon, produzidos em quase todos os lugares do mundo. “Fica como um jogo de cerejas. Não se trata de uma descrição poética sobre o aroma dos vinhos. É efetivamente como ter um jogo de cerejas flutuando na língua: os mesmos sabores e a mesma acidez”, diz o especialista chileno Fabrício Tapia.
Entre os vinhos mais comuns dessas regiões estão o sauvignon blanc, syrah, riesling e chardonnay, além do pinot noir, que só amadurece em climas frios. No caso chileno, um dos vinhos desse tipo é produzido às margens do rio Bío Bío, onde estão localizados vales menos conhecidos do grande público – especialmente do brasileiro. “A vinicultura em Bío-Bío requer mais paciência, habilidades e determinação do que em qualquer outro vale chileno”, diz um artigo do famoso site Bodegas y Viños.
A produção do vinho mais austral do mundo, no entanto, é objeto de debate: os cultivadores argentinos dizem que são as regiões próximas ao rio Nant y Fall, onde fica o Valle Hermoso, próximo à cidade de Trevelin, a quase 2 mil quilômetros da capital Buenos Aires. Já os chilenos acreditam que é ao redor do município de Puelo, a 1.000 quilômetros de Santiago, mas não tão distante da importante cidade de Puerto Montt. Em linha reta, a distância entre as duas é de 170 quilômetros, sendo que a Trevelin fica mais abaixo.
Para os argentinos, há ainda a cidade de Trelew, na mesma linha horizontal de Trevelin, mas do outro lado do território do país, próximo ao Oceano Atlântico. Tanto em uma como na outra, a produção de vinhos foi motivada pelo Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (Inta) do governo da Argentina, que injetou dinheiro e equipes para iniciar o cultivo das uvas na província de Chubut, onde ambas as cidades estão.
O projeto começou em 2003 e se destacou pelo cultivo da uva pinot noir, com notas florais, frutais e vegetais. Tipos mais comuns de vinho, como o próprio cabernet sauvignon, também foram introduzidos na região, apesar de possibilitarem resultados distintos. “O objetivo é que o cultivo de videiras se complemente com a produção dos vinhos da região. Não recomendamos que se cultive para vender as uvas às lojas, mas para que os produtores se sintam à vontade para elaborar seus próprios vinhos”, disse a coordenadora do projeto, Belén Pugh, ao jornal argentino Mercurio.
No Chile, o vale de Puelo produz cerca de 1.500 garrafas de pinot noir por ano, mas deve aumentar a safra em 2017 para lidar com a demanda dos mercados europeu e asiático, encantados com as características do vinho austral. “O vale é protegido pelas montanhas, o que permite que a temperatura não seja tão fria e seja constante durante o ano. Isso evita que a neve ou as geadas caiam com tanta força sobre as plantas”, revela o diretor da vinícola Villaseñor, a principal da região.
Em Puelo e em Cochamó, cidade vizinha, há até um roteiro turístico em torno da árvore que deu origem ao projeto de cultivar as uvas no local. No entanto, as ações das autoridades agrícolas argentinas fizeram os chilenos responderem à mesma altura: hoje, possivelmente é no Chile que se faz o vinho mais austral do globo terrestre.
Há pouco tempo, o Instituto de Investigações Agropecuárias (Inia) do governo chileno levou mudas de uvas sauvignon blanc e pinot noir para a cidade de Chile Chico, na província de Aisén, a 2.000 quilômetros de Santiago, 1.000 de Puelo e 600 de Trevelin, na Argentina. Com elas, foi possível produzir os primeiros litros de vinho da região e iniciar um projeto de desenvolver a produção na área. O plano agora é levar as uvas para regiões ainda mais austrais, como Bahía Jara e Levicán. Até o momento, esse é o vinho feito mais ao sul do planeta possível.
Segundo o diário chileno La Tercera, sequer é conhecido o resultado do vinho produzido em Chile Chico: será preciso esperar até setembro, no ciclo de madureza das frutas. “Se a gente obtiver bons produtos, o vinho pode ser comercializado em mercados gourmet e no exterior por preços muito rentáveis”, finaliza Diego Arribillaga, encarregado do projeto.
E a cidade mais austral?
A discussão sobre a “australidade”, no entanto, vai muito além da produção de vinhos: as próprias fronteiras entre Argentina e Chile promovem um debate sobre qual país tem a cidade mais austral do mundo. Ao contrário da bebida, porém, nessa briga os argentinos parecem estar à frente.
De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas do Chile (INE), apesar de o assentamento mais ao sul do mundo ser chileno, o de Puerto Williams, no Cabo de Hornos, a 3.600 quilômetros de Santiago e a 900 da Ilha Rei George, na Antártida, onde ficam algumas estações de pesquisas científicas – portanto, mais próximo do território antártico do que do continente –, é a Argentina que tem o município mais austral: Ushuaia.
De acordo com as autoridades chilenas, só pode ser considerada “cidade” uma comunidade que reúna mais de 5 mil pessoas. Os parâmetros instituídos em 2005 ainda indicam que uma união entre 2 e 5 mil habitantes é considerada um “povoado” (pueblo, em espanhol). De acordo com o censo chileno, vivem em Puerto Williams pouco menos de 2 mil pessoas.
Ushuaia, no lado argentino, a 3.100 quilômetros de Buenos Aires e menos de 1.000 em relação à Antártida, ao contrário, é uma cidade movimentada e que, desde os anos 1990, possui mais de 50 mil habitantes. A distância entre ela e Puerto Williams é de 46 quilômetros. “Os argentinos conseguiram algo que o Chile deveria imitar: uma preocupação por parte do Estado em converter Ushuaia em uma cidade, com sua funcionalidade definida e com aplicação de uma série de políticas públicas”, lamentou o professor de geografia da Universidad de Magallanes, do Chile, ao periódico também chileno Bio Bio.
Texto por: Agência com edição Eliria Buso
Foto destaque por IStock/saiko3p