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Naypyidaw, em Myanmar: a capital mais misteriosa do mundo

Foto por Istock/ Pipop_Boosarakumwadi

Dirigir por Naypyidaw, a cidade planejada que é capital de Myanmar, pode fazer com que um visitante estrangeiro esqueça que está no centro de um dos países mais pobres do sudeste da Ásia. Em cada lado das ruas, uma série de prédios gigantes que parecem não ter fim, hotéis com detalhes arquitetônicos e grandes shoppings criam uma sensação de que todos eles caíram do céu pintados em cores suaves: rosas claros, azuis-bebê, beges. Os pavimentos das estradas são novos e possuem canteiros cuidados e repletos de flores. Rotundas meticulosamente ajardinadas ostentam grandes esculturas.

A escala da cidade é difícil de descrever: ela se estende por cerca de 480 mil hectares, seis vezes o tamanho de Nova York, nos Estados Unidos. Tudo parece imenso: as ruas — claramente projetadas para carros e motocicletas, não pedestres — têm até 20 pistas e alcançam um horizonte tão longe quanto o olho possa ver (o rumor é que os grandes bulevares foram construídos para permitir que aviões pousem durante protestos contra o governo ou outros “distúrbios”).

Há ainda um parque de safári, um zoológico completo com um habitat artificial para pinguins mantido com ar-condicionado e ao menos quatro campos enormes de golfe. Diferente da maior parte de Myanmar, há um sistema de eletricidade que não deixa ninguém desabastecido. Muitos restaurantes possuem sinais de Wi-Fi rápidos e de graça.

A única coisa que Naypyidaw não tem, ao que parece, é gente. As vastas estradas ficam completamente vazias e há uma solidão constante no ar. Oficialmente, a cidade possui uma população de um milhão de pessoas, mas muitos duvidam que esse número esteja perto da real dimensão. Aos domingos, as ruas são silenciosas e os prédios ficam vazios. “É um cenário real daqueles filmes pós-apocalípticos de Hollywood”, disse a jornalista britânica Claire Provesth, do The Guardian.

Construída em meio a plantações de arroz e campos de cana de açúcar, Naypyidaw (geralmente chamada também de “Lugar do Rei”) se tornou capital em novembro de 2005 pelo então regime militar de Myanmar. Rumores indicam que foram gastos cerca de US$ 4 bilhões (R$ 20 bilhões) em um país que gasta apenas 0,4% do PIB com saúde pública — considerada a pior do mundo.

Foto por Istock/ malo85

Nos últimos anos, o planejamento urbano de Naypyidaw e sua falta de pessoas se tornou objeto de curiosidade internacional: a rede britânica BBC, por exemplo, foi até a cidade com uma equipe que jogou futebol nas ruas vazias, organizou uma corrida de carros nas estradas e fez piadas sobre as “dificuldades” do trânsito no inexistente horário de rush. Os automóveis são tão raros que não há um serviço de organização do trânsito e dificilmente se faz necessária uma consulta de licenciamento.

Se é piada no exterior, o mesmo não se pode dizer dentro do país. Apesar de um governo civil ter retomado o poder em 2011, os habitantes locais afirmam que não é seguro falar com a imprensa estrangeira. Os que topam dar entrevistas pedem que seus nomes reais não sejam revelados, segundo o The Guardian. “Não é seguro. O governo mudou, mas é ainda o mesmo”, disse uma fonte ao tablóide britânico.

“A cidade é principalmente para os membros do governo, para os prédios do Estado. Não há muitos interesses aqui. Muitas pessoas não são felizes morando em Naypyidaw, mas estão aqui porque podem trabalhar e ganhar dinheiro”, continuou.

As origens da cidade são repletas de rumores e especulações: alguns descrevem o projeto como uma vaidade de Than Shwe, o último líder militar de Myanmar. Muitos acreditam que ela reflete as “ilusões de grandeza ou, talvez, outro sinal da possível demência de Than Shwe”, diz um relatório produzido pela diplomacia estadunidense no país em 2006 e revelado pelo Wikileaks anos depois.

Outras teorias pontuam que uma junta militar crescente quis mover a capital do país para longe do mar, temendo uma invasão marítima dos Estados Unidos. Ao invés disso, o lugar dos poderes político e militar de Myanmar hoje fica próximo às regiões em que movimentos separatistas e grupos étnicos reivindicam direitos para minorias oprimidas, como os Karen e os Rohingya.

O regime e Than Shwe, então, levaram a capital para Naypyidaw assim como aconteceu com Canberra, na Austrália, e Brasília — uma capital longe da superpopulosa cidade de Rangoon. A história, porém, não convence. “Ao se distanciar da maior cidade do país, Than Shwe e as autoridades se hospedaram longe de uma possível revolta popular”, sugerem os escritores e ativistas britânicos Benedict Rogers e Jeremy Woodrum, autores do livro “Than Shwe: Unmasking Burma’s Tyrant” (“Than Shwe: Desmascarando o tirano da Birmânia”, em tradução livre).

A estrada que liga Naypyidaw a Rangoon possui mais de 300 quilômetros de distância, passando por campos de arroz e pequenas montanhas de pedras. Aos domingos, fica inteiramente vazia, silenciosa e, de vez em quando, é possível ver um carro no horizonte. Ao longo da rodovia, algumas placas orientam os motoristas para controlarem a velocidade: “A vida é uma jornada. Não deixe de completá-la”, diz uma delas. Apesar de não ter muitos automóveis e de vários viajantes afirmarem ser a melhor rodovia de Myanmar, ela é chamada em relatórios de “estrada da morte”.

Em Rangoon, funcionários estrangeiros riem quando perguntados se gostariam de ser realocados para Naypyidaw. Ao invés disso, eles fazem a viagem de cinco horas de carro ou, mais recentemente, de avião. Com voos custando até US$ 350 (R$ 1,3 mil) ida e volta, é difícil calcular qual o melhor custo-benefício. “É um desafio”, admite Jorge McFlyes, diretor de uma ONG britânica em Rangoon, ao portal Asia Today. Ele e outros dois colegas têm que viajar semanalmente para a capital. “É muito bizarro e muito vazio. Um lugar estranho, mas como é a capital, temos que ir”, continuou.

Foto por Istock/ Murmakova

Naypyidaw não é uma construção politicamente motivada: em seu plano criado por projetistas de um governo autoritário, há também ecos de outros lugares, como de Astana, no Cazaquistão, Oyala, na Guiné Equatorial, ou da bizarra Gbadolite feita pelo ditador Mobutu Sese Seko, da antiga República Democrática do Congo (RDC). Myanmar mesma tem uma longa história de mudanças de capital: Mandalay, a antiga cidade real às margens do rio Irrawaddy, foi construída pelo rei Mindon no século 19.

A cidade está disposta em grandes zonas de difícil manejo — hotéis, edifícios estatais, residências oficiais, o complexo militar — fazendo ser difícil trabalhar fora de onde o centro funciona. Isso, também, é possivelmente intencional: não há praças públicas grande em que seja possível congregar pessoas, como se tornou a Tahrir, no Cairo, na Primavera Árabe. Um jornalista indiano que visitou Naypyidaw a descreveu como uma “ditadura em cartografia”.

 

“A nova capital”, diz outro trecho do documento diplomático dos EUA publicado pelo Wikileaks, “possui infraestrutura essencial”. Os escritórios oficiais realocados não funcionam normalmente e milhares de funcionários civis que tiveram que se mudar encontraram grandes dificuldades pessoais. O regime ameaçou prender ou romper o pagamento dos salários de quem se recusasse a fazer a transferência, segundo o The Guardian.

No passado recente, Naypyidaw se juntou ao circuito global de encontros, recebendo eventos e reuniões com líderes globais e especialistas internacionais. O ex-presidente dos EUA, Barack Obama, esteve na cidade em 2016. O ex-primeiro-ministro britânico, David Cameron, a visitou em 2012. Naquele mesmo ano, depois de ganhar um histórico assento no parlamento, Aung San Suu Kyi, uma das oposicionistas mais famosas ao regime, também foi viver na cidade. No futuro próximo, espera-se que ela encha de… turistas.

Texto por: Agência com edição

Foto destaque por Istock/ Pipop_Boosarakumwadi

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