Provavelmente não há cidade no mundo onde se veja e se jogue tanto futebol como em Buenos Aires, na Argentina. A metrópole, terceira mais populosa da América Latina, com 13 milhões de habitantes, é a que tem mais estádios com capacidade para mais de 10 mil torcedores do planeta: 36.
Muitos portenhos – os que vivem na capital – e bonaerenses, da província ao redor da cidade, jogam futebol ao menos uma vez por semana em ligas de futebol amador ou em partidas com amigos que terminam em churrascos ou pizzas.
Falando sobre a importância do futebol na América Latina, o escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu em Futebol ao Sol e à Sombra que o esporte se assemelha a Deus, porque “tem a devoção dos crentes e a desconfiança dos intelectuais”.
“É raro alguém que não tenha o costume de jogar futebol em Buenos Aires. Ao contrário, nas minhas recentes viagens a Madrid ou Barcelona, na Espanha, foi muito difícil armar uma partidinha”, contou o escritor Alejandro Dolina ao jornal argentino La Nación.
Apesar da variedade de estádios e da mística em torno dos jogadores e da seleção nacional, Dolina acredita que as canchas de Buenos Aires não fazem jus ao futebol argentino. “São medíocres, incômodos, antiestéticos, sujos e inseguros”, aponta. Entre os mais famosos – e grandes -, estão o Monumental de Nuñez, do River Plate, o El Cilindro, do Racing, em Avellaneda, e, claro, a lendária Bombonera, do Boca Juniors, em La Boca.
Pelos 36 estádios que recebem mais de 10 mil pessoas, Buenos Aires fica à frente de São Paulo, que possui 15 arenas nessas dimensões, Londres, com 12, Rio de Janeiro, com nove, e Madrid, na Espanha, com cinco. “Uma das explicações para isso é que a cidade preservou a tradição britânica de que cada clube precisa ter seu próprio estádio. Em outros países, as equipes de uma cidade jogam no estádio municipal. Aqui, houve muita luta para os clubes conseguirem seu próprios terrenos e construírem suas arquibancadas com ajuda de vizinhos e de mecenas”, conta o historiador argentino Julio Frydenberg.
Quando as passagens aéreas para Buenos Aires ficaram mais baratas e o turismo de latino-americanos à capital argentina se expandiu, a administração municipal decidiu explorar a herança futebolística da metrópole: em janeiro, começaram a circular, três vezes por semana, ônibus turísticos que levam os visitantes por um circuito de cinco estádios portenhos.
A ideia é que o tour conte não apenas as histórias dos clubes e seus estádios, mas também dos bairros onde eles estão localizados. São eles La Boca, Parque Patrícios, Boedo, La Paternal e Nuñez, regiões onde se sediam Boca Juniors, Huracán, San Lorenzo, Argentinos Juniors e River Plate, respectivamente.
“Cada um possui sua identidade, que se expressa bem no que os torcedores querem ver dos seus times no campo”, conta o jornalista peruano Bruno Ortiz, que estuda a relação entre futebol e os moradores de Buenos Aires.
O tour ainda percorre bairros como Retiro, Monserrat, San Telmo, Barracas, Flores, Caballito, Villa del Parque, Villa Crespo, Palermo e Belgrano durante as passagens entre um clube e outro. O recorrido é gratuito, mas os visitantes precisam pagar pelos ingressos nos estádios – alguns permitem até que se pise no campo de jogo – e por um almoço opcional. Se o turista prefere pagar antecipadamente para entrar em todas as arenas durante o circuito, paga 388 pesos (cerca de R$ 70).
“Barrios”
Diferente das grandes cidades brasileiras, na Argentina, o bairro (barrio) é uma dimensão espacial que cria laços comunitários e práticas sociais muito fortes. O morador de um barrio de Buenos Aires pode se identificar mais com ele do que com a própria cidade, fazendo com que o clube seja a expressão competitiva dessa diferenciação.
Boedo, por exemplo, é o bairro do San Lorenzo, ainda que o seu estádio, o Nuevo Gasómetro, não esteja erguido lá. O Gasómetro, seu primeiro estádio – este sim localizado em Boedo -, foi expropriado pela ditadura argentina para saldar as dívidas que o clube tinha com o Estado em 1979. No lugar, foi construído um supermercado. O San Lorenzo, sem dinheiro, reconstruiu sua casa a 3 quilômetros dali, no bairro de Bajo Flores.
A sede do clube, no entanto, permanece em Boedo, literalmente ao lado do que era o velho estádio e hoje é o supermercado. Além dela, as ruas do bairro são repletas de bandeiras, pinturas com as cores do time, pequenos campos, bares temáticos e propagandas que lembram qualquer um que passa por ali que aquela região pertence aos torcedores do San Lorenzo.
Em 2015, a direção do Carrefour – o mercado hoje instalado no que era o terreno do estádio – e o San Lorenzo anunciaram um acordo pela compra do local, em um negócio de cerca de R$ 600 milhões.
Boedo, vale dizer, é um dos bairros típicos de Buenos Aires, onde até meados do século 20 a boêmia argentina se reunia para compor letras de tango, escrever livros e promover debates políticos. Em alguns dos cafés que resistem ao tempo e funcionam até hoje, podem ser encontradas histórias sobre, por exemplo, a composição de Sur, um dos tangos mais famosos da Argentina, escrito por Homero Manzi no antigo San Juna – hoje, Café Homero Manzi.
Boedo se difere muito de Nuñez, o bairro do River Plate, já nos limites da cidade, e que abriga o Monumental, estádio que serve como casa da seleção argentina em Buenos Aires. A região foi tradicionalmente conhecida por suas ruas tranquilas, com grandes casas e praças arborizadas, característica que se valorizou nos últimos anos, quando empreiteiras escolheram Nuñez para construir prédios residenciais.
Texto por: Agência com edição Eliria Buso
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